Uma vez fiquei em um airBnB de um jornalista na República Tcheca.
O jornalista (ou seria escritor?) havia morrido há pouco, a família, sem saber o que fazer com o apartamento, começou a alugar para estranhos. A neta nos contou isso ao entregar a chave. Fiquei ali com meu marido e meus pais, estava frio e tomamos sopa quase todas as noites.
De todas as muitas belezas de Praga, aquele apartamento foi a que mais me marcou.
Um apartamento simples, num prédio antigo.
Luxo nenhum além daquela máquina de escrever, daquela mesa antiga de madeira escura e de todos aqueles muitos e muitos livros. Havia também um sofá vermelho, de um lugar, ao lado de uma estante, uma luminária posicionada logo acima do sofá, com luz direta, convidando à leitura.
Vi e vivi a vida daquele homem pelos seus livros. O homem certamente era jornalista, era comunista, e era romântico. O homem gostava de história e de arte. O homem valorizava clássicos de política, revolução e literatura mundial. O homem fumava cachimbo e usava chinelos velhos e quentes, guardados num armário próximo à entrada.
Me lembro bem que a mesa era gasta no local em que se apoiam os braços para datilografar.
Imaginei quantas e quantas noites aquele homem sentara-se àquela mesa, ou aquele sofá vermelho, e entre leituras, e escritas, e sonhos, e devaneios, a vida que viveu alí. Senti-me bem naquela casa. Nos conversamos, eu e seu ex-dono, por meio daqueles livros.
Lembro-me de observar, em meio às minhas angústias, e buscas, e indefinições, que seria só ter um refúgio como aquele, pra datilografar minha idéias e pensar meus pensamentos. Que seria só ter o silêncio e a clareza de poder exercitar esse pensar sobre a diversidade infinita de temas e questōes humanas ainda pendentes de elaboração, bem devagar, toda noite, e que assim a vida estaria completa, me bastaria.
Hoje celebramos os três anos do meu primogênito, que por sinal aconteceu de nascer do outro lado do mundo, nem em Praga, nem em Tupã, mas no mesmo dia do meu nascimento.
Qual não foi minha alegria ao ouvir ele pedindo ‘uma festa de livros, mamãe’. Tema inusitado, e desde quando livros combinam com festa de criança? Cogitei com ele alguns temas mais fáceis de comprar, Lightning McQueen, Minions, aqueles cachorrinhos bombeiros do paw patrol…mas Samuel queria mesmo a sua ‘festa de livros’.
A fizemos então. E depois de comer todos os brigadeiros que pude em busca de um sentido qualquer, e de pensar, como dei de fazer todas as noites, nas saudades, angústias e nas dúvidas que me acompanham, fui me lembrando daquele apartamento de Praga, e daquele escritor-jornalista que viveu ali. Lembrei-me do breve tempo que passei ali antes mesmo do Samuel existir.
Estranhamente algum sentido se fez nessa confusão toda da vida, tão rápida.
Um deles é que fazemos família por onde vamos, e que nessas andanças e desencontros, sempre haverá alguma família a se deixar. A saudade vai ser mesmo minha indesejada companheira de viagem. É o preço do mover-se, e do mover do tempo. O segundo é que sempre terei os livros e todas as mais maravilhosas questões humanas para me entreter. Tenho que parar de deixá-los por onde eu vou (os livros e os meus amigos). Já me doeram demais essas rupturas todas, já arrancaram pedaços demais. É hora de comprar aquela mesa antiga de madeira escura, é hora de fincar os braços nesse teclado por noites suficientes para furá-lá. É hora de ver árvores e crianças crescendo pela mesma janela, que dê pra um mesmo jardim.
E se eu souber me permitir essas noites de silêncio, aquilo que sou eu pode, quem sabe, continuar sendo, e ainda será possível me encontrar com a paz e a certeza daquele apartamento de Praga. Basta apenas uma mesa de madeira escura, uns momentos pra parar, um bocado de silêncio, e algumas letras pra juntar.