Sobre a saudade que nos move

Saudade das contradições todas, da bagunça, do caos. Traga-me a intensidade dos problemas sem solução.

Do vermelho, da música que alimenta. Do alimento.

Dos 5 minutos felizes aqui ou alí. Do choque, do caos. Roubaram a TV da caixa do supermercado. Mas lá fora estava sol.

Saudade de acordar, de abrir a janela pro azul.

Saudade das cores e sabores, mosaicos de feijão com arroz.

Cores, contrastes, plantas de sol e calor.

Daquele antúrio vermelho da vovó que mamãe agora resolveu plantar na sala do apartamento.

Nas minhas aspirações infundadas. Dos meus sonhos tolos.

Nem que seja apenas um cachorro, um quintal e uma varanda com mesa, com antúrio.

Pra poder sair descalça na rua e sentir o calor brando e ascendente do começo da noite, ao despedir-se de uma visita qualquer. Ter visitas.

Pra poder me reencontrar com a única língua que me inspira poesia.

Pra ver envelhecer e crescer juntos aqueles que mais amo.

Volto pra poder sentir mais, só pra isso. Pra acordar desse culto constante às saudades, des-exilar-me.

Amor, calor, revolta, por que não?

Pra sentir.

Volto

Volto seguindo anseios do coração

Não dá mais pra fugir. Fingir que não vejo essas faltas todas.

Deixei sonhos e amigos, deixei um lugar bom de pessoas boas, mas finalmente me reencontro e, nesse momento, sinto paz.

O exílio pandêmico tirou muito de mim, foi um pouco além.

Três natais são natais demais.

Gravidez, parto e puerpério. Estar só num quarto de hospital com uma filha recém parida me trouxe mais questões do que respostas. Vulnerável. Penso em cada uma das decisões que me levaram até ali.

Filhos sem os seus, os meus. Uma dor que eu carreguei por tempo demais. O peso de uma decisão só minha. As crianças crescem, os velhos envelhecem e passamos a morar nessas ausências. O que mais é a vida além desses momentos e abraços?

Volto pra me reencontrar com aquilo que me levou pra tão longe, mas também com aquilo que sempre me leva de volta. Volto porque a deriva também nos guia. Voltar requer mais coragem que partir. Humildade, apreensão. Volto para uma ilusão criada em noites frias? uma pintura da saudade que insisti demais em apreciar?

Se tudo que me levou pra tão longe foi um erro? não foi. Volto apenas porque tive a chance de ir, volto apenas porque tenho a sorte de ainda poder voltar.

Para Samuel

Há 3 anos que me encontro e me perco nesse labirinto da maternidade de você.

Gosto tanto dos nossos tempinhos juntos. Em piruetas lúdicas fantasiamos esse outro mundo, só nosso. Frustramo-nos, e sofremos, e em meios a gritos e necessidades, e urgências, e aconchegos, convivemos. E as vezes esqueço do mundo e só vejo você, e a beleza nos olhos dos seus três aninhos. O brilho que você espalha pelos olhos de quem olha, e te vê.

E esse amor não é brega como as declarações todas que te faço ou escrevo. Não é piegas como meus beijos e abraços de boa noite, nos quais me demoro em não te soltar.

Ele é montanha russa, corre rápido, não olha pra trás. Vai voando em piruetas. Tão difícil parar e observar essa explosão de menino que é você. Tão difícil de observar com atenção e calma. Luz tão forte que confunde os olhos, rodopia em furacão. Escapa, muda, cresce, foge rápido do meu abraço e do beijo que consegui estalar na sua bochecha antes ainda do café da manhã.

Rimos juntos de você agora ser um pinguim. Gostamos de coisas que gostamos juntos e podemos fazer bolos de chocolate que você já sabe fazer praticamente sozinho (e me pergunta cinco vezes em seguida se fez sozinho mesmo). Podemos passar uma hora inteira falando de uma única página de um livro qualquer. Seu brilho e suas perguntas me enchem de maravilhas inesperadas. “O que tem dentro do fogo, mamãe?”

Essa semana você colocou seus sapatos e fez xixi sozinho. Essa semana sua fralda noturna já acordou seca duas vezes. Coisas imensas de só eu e você. Coisas pequenas das quais rimos juntos sem precisar explicar.

Quando lemos seus livros centenas de vezes. Vou guardando esses pedacinhos de momentos de você lá no canto mais lindo de mim. Tudo de você me avassala, me embevece, me vira de ponta cabeça. Intensidade. Nos seus olhos a maravilha de um mundo novo me contagia, me maravilha também aquilo que eu não mais sabia ver. Nos seus olhos, o que é chocante me choca mais. Você me mostra que a imaginação vai além, que a realidade quase nunca faz sentido, e que tudo, absolutamente tudo, tem que ter um porquê.

Te amo, meu pequeno, obrigada por me ensinar tanto amor.

Como viver nossa vida em uma era de crises?

Há 3 semanas retornamos para a NZ e enquanto eu me conformava com ter feito essa viagem inaceitavelmente longa novamente, o país vivia enchentes, ciclone tropical com mortes e mais enchentes e um terremoto forte escala 6. Enquanto isso eu sozinha em casa com duas crianças e meu marido participando de uma conferência corporativa no norte, onde diziam pra ele vender mais pasta de dente, pra fazer mais dinheiro. A corporação bilionária que o emprega fez seus funcionários viajarem para a conferência da empresa em meio à uma emergência nacional.

Não sei como viver nossa vida nessa era de crises, mas parece que não deve ser assim.

12/01/2023

O mais bonito que a gente faz nessa vida é o amor.

Mas então ficamos nos perdendo entre outros motivos, batendo cabeça. Ilusões.

A ilusão é legal também, mas a verdade é mais simples.

Vida boa é vida regada de amor. Só isso.

Pés descalços, contas pagas, crianças saudáveis, avós por perto, e amor. Nem é querer demais, é?

Vida boa é vida que nos une. É o que faz sentido hoje, agora, não amanhã. É poder sentar na mesa com os irmãos, dar presentes pras sobrinhas, participar das festas, olhar nos olhos. O resto vai fazer sentido, não vai? “No longo prazo estaremos todos mortos”, disse alguém, certa vez.

O resto se acerta quando a alma está em paz. Vai ser bom.

11/01/2023

E então eu saio por aí procurando pistas.

Pistas de quem eu sou, de quem eu quero ser, e de quem eu posso ser a depender do local em que eu me encontre.

Essa flexibilidade de localizações e futuros possíveis me atormenta. Excesso de escolhas.

Eu não tenho destino traçado, eu tenho minhas verdades e minhas tristezas. Eu tenho preconceitos, visões de mundo, preços a pagar. E agora eu também tenho dois filhos e o futuro deles nas minhas mãos.

Fui pra Nova Zelândia procurando parar, assentar, criar as crianças, querer menos de tudo aquilo que eu tinha demais e mais daquilo do que eu tinha nada. Encontrei lá novas ausências, novas inaceitabilidades. O clima, a chuva, o mercado imobiliário, as aspirações vazias da minha instituição de trabalho, distância praticamente instransponível, o vazio doloroso da convivência familiar.

Olhei para a Grã Bretanha com outros olhos, vi tudo que eu tinha lá apesar do que eu não tinha. Sonhei em morar em uma cidade pequena do norte e ler todos aqueles clássicos da literatura inglesa indicados na escola das crianças. Iludi-me logo que ia começar, de repente, a gostar do céu cinza, esquecer da saudade, da frieza, e conseguir ser feliz. Só pra ficar lendo os clássicos naquelas bibliotecas antigas e me sentindo importante pela beleza dos livros velhos, dos prédios velhos, e dos costumes velhos.

Olhei para o Brasil também com outros olhos. Desdenhei a necessidade da carreira internacional, a causa imediata de todos os meus males. Chicoteei-me pelo meu arraigado complexo de vira lata. Posso contribuir mais, pensei. Aqui é onde está meu coração, meu entusiasmo, aqui mora o meu sol. Sonhei em morar a dois palmos da casa da vovó, pra mostrar pras crianças como a família é aquilo que há de melhor nessa vida. Pra eles, de fato, se conhecerem. E dar aulas de inglês, sei lá, fazer artesanatos. O importante seria mantê-los e mantermo-nos sempre por perto daqueles que importam. O que é a vida além disso?

E todos esses futuros possíveis só me fazem comer demais enquanto arrumo as malas para voltar para a inaceitabilidade da minha realidade atual. Entre a razão e a emoção acabei ficando com o vazio daquilo que deixou de fazer sentido. Volto para um lar meticulosamente construído para ser pra sempre. Volto a mergulhar nos meus questionamentos sem fim, na insatisfação constante. Quem sou? Quem quero ser? Qual é o preço a pagar?

01/01/2023 – Poema de Ano Novo

A gente escreve as linhas dessa vida

Antes, depois e durante esses primeiros dias.

A gente sente sono e acorda mesmo assim, e então, se arrepende da hora que dormiu.

Faz o que não se deve sabendo, se preocupa, gasta, come, tarda a dormir, vai morar do outro lado do mundo achando que era logo ali. E continua.

Achando que ao mudar o tempo ou o espaço a gente muda. Mas não muda.

A gente vai e quer voltar, acorda querendo dormir, olha no mundo sempre o que não tem. Fica emburrado, não se assenta, não se acalma. Esquece que não dormiu, mas que festou, que não perdeu a barriga, mas que comeu. Que viajou 36 horas pra chegar mais perto, mas que valeu a pena. Esquece de tanto e de tão bom, e que tudo está no exato lugar em que deveria estar. Entra nesse frenesi, nessa loucura toda de mudança. E ficamos sendo assim, meio ridículos.

É a natureza das coisas? a gente se insatisfaz. Vira e mexe, e decide, e revoluciona. E nesses tantos primeiros dias, de mudança absoluta, recomeços certos e novos capítulos, sobra apenas a continuidade das coisas. Daquilo que é em qualquer amanhã. Daquilo que era ontem e não vai deixar de ser. Aqui, na rua ao lado, no ano par. Basta apenas lembrar-se disso, acalmar esses quereres todos de coisa alguma, e seguir.

Eu que não tenho raízes

Andei sempre levada pelas marés.

Minha força era tirada de ir pra mais longe. Eu nunca soube, eu nunca tive a coragem de voltar.

Pra me curar da saudade antiga, eu criava saudades novas.

De porto em porto fui deixando meus anos.

A vida foi se passando pelos meus olhos sempre com paisagens diversas.

Fui sendo feliz, triste, deixei de ser jovem. Fui sendo mãe, fui sendo amiga, fui tentando ser coisas novas, mas não sei, até hoje, dessas raízes que me faltam. E de repente resolveram me faltar com tanta força.

Fui criando traumas, esquecendo tradições, perdendo aniversários. Fui fazendo meus bolos e aceitando. Me reconstruindo, me adaptando. Aprendendo a me contentar com páscoas sem bacalhau, com tantos natais sem farofa. Há 11 anos sem carnaval. Com breves ligações telefônicas que só ampliavam esses buracos fundos dentro de mim.

Eu que não tenho raízes, quem sou e o que fiz de mim?

Tenho amigos que se casam em outros continentes, quantos amigos, e quantos casamentos.

Meu filho me ensina músicas de uma infância que eu não tive. Músicas que tento aprender a cantar.

E quando se fala em voltar, agora já nem sei, pra onde?

Eu que não tenho raízes.

Voei tanto nesse embaralhado de itinerários, nessas confusões todas de fusos e bagagens mil, que perdi meu pouso, minha conexão.

Com todos esses amigos que deixei pelo mundo, foi ficando um pouco do que eu sabia de mim. E então já nem me lembro mais.

De todos os casamentos, formaturas e funerais que perdi por não estar, restam só as lembranças que não criei. E por que mesmo?

Fui colecionando endereços, mas nunca móveis. Minhas melhores panelas, quadros e plantas ficaram para esses amigos, por aí.

E então fui ficando velha e agora dei pra sentir falta do que não tenho. Dei pra sentir falta dessa vida que deliberadamente não construí. Dei pra sentir falta de ser assim, rotineira, e profundamente enraizada. Dei pra sentir falta de visitar tios e avós, de estar junto daqueles que me fizeram ser eu. Dei pra sentir falta de fazer parte de algo que reconheça meu direito inato de pertencer. Perdi o que me empurrava pra longe. Fiquei, de repente, mais humilde e disposta a aceitar. E então quero de novo partir de amigos, vender os móveis. Voltar talvez seja apenas ir novamente pra mais longe. Eu já não sei.

Me confundi.

E por que mesmo?

Lago Taupō – Nova Zelândia

Suburbana

Em minhas conversas com o universo eu desejo tanto e tão pouco

Desejo silêncio, calma, rotina, desejo mudar o mundo e revolução.

Desejo fortemente, profundamente, contribuir para que a gente se encaminhe, como humanidade para outro destino. E queria que esses sonhos começassem comigo, mas não começam.

Eu sou assim tão padrão, tão típica. Quero ter janelas de vidro duplo e garagem coberta, aquilo que desejam todas as mães para os seus filhos, que as crianças não fiquem assim tão doentes durante o inverno, e que consigamos crescer e cortar a grama do jardim.

Não gosto desse destino de tragédia e destruição, ganhos, lucros e exploração. Quero contribuir para uma sociedade transformada e transformadora, que não seja essa. Mas sou eu mesma, assim, tão habitual, tão plana. Tentei as fraldas de pano, mas cedi a alguns vazamentos, E a falta de tempo para lavar? Tentei a comida orgânica, mas era cara e difícil de comprar. Por algumas semanas fiz meu próprio iogurte, até que acabou a paciência de esperar. O pão eu sigo fazendo, mas comprei o fermento industrial. A vida estilhaçou meu romantismo ou eu era mesmo só assim?

Escolho a vida suburbana enquanto sonho além dos muros. Da paisagem plástica do bairro recém construído com SUVs na garagem, sonho com a organicidade de hortas comunitárias, vidas comunitárias, um mundo sem plástico, com árvores antigas e pássaros no quintal. Mas adoro janelas de vidro duplo.

E vou oscilando em me achar tão grande e tão pequena, tão capaz e explosiva e tão típica e mundana.

Entre querer que o mundo seja outro lá fora, com grande ideais e romances, e que o mundo funcione bem aqui dentro, sem que as crianças destruam as paredes da casa nova a nossa grama do jardim.

Festa de livros

Uma vez fiquei em um airBnB de um jornalista na República Tcheca.

O jornalista (ou seria escritor?) havia morrido há pouco, a família, sem saber o que fazer com o apartamento, começou a alugar para estranhos. A neta nos contou isso ao entregar a chave. Fiquei ali com meu marido e meus pais, estava frio e tomamos sopa quase todas as noites.

De todas as muitas belezas de Praga, aquele apartamento foi a que mais me marcou.

Um apartamento simples, num prédio antigo.

Luxo nenhum além daquela máquina de escrever, daquela mesa antiga de madeira escura e de todos aqueles muitos e muitos livros. Havia também um sofá vermelho, de um lugar, ao lado de uma estante, uma luminária posicionada logo acima do sofá, com luz direta, convidando à leitura.

Vi e vivi a vida daquele homem pelos seus livros. O homem certamente era jornalista, era comunista, e era romântico. O homem gostava de história e de arte. O homem valorizava clássicos de política, revolução e literatura mundial. O homem fumava cachimbo e usava chinelos velhos e quentes, guardados num armário próximo à entrada.

Me lembro bem que a mesa era gasta no local em que se apoiam os braços para datilografar.

Imaginei quantas e quantas noites aquele homem sentara-se àquela mesa, ou aquele sofá vermelho, e entre leituras, e escritas, e sonhos, e devaneios, a vida que viveu alí. Senti-me bem naquela casa. Nos conversamos, eu e seu ex-dono, por meio daqueles livros.

Lembro-me de observar, em meio às minhas angústias, e buscas, e indefinições, que seria só ter um refúgio como aquele, pra datilografar minha idéias e pensar meus pensamentos. Que seria só ter o silêncio e a clareza de poder exercitar esse pensar sobre a diversidade infinita de temas e questōes humanas ainda pendentes de elaboração, bem devagar, toda noite, e que assim a vida estaria completa, me bastaria.

Hoje celebramos os três anos do meu primogênito, que por sinal aconteceu de nascer do outro lado do mundo, nem em Praga, nem em Tupã, mas no mesmo dia do meu nascimento.

Qual não foi minha alegria ao ouvir ele pedindo ‘uma festa de livros, mamãe’. Tema inusitado, e desde quando livros combinam com festa de criança? Cogitei com ele alguns temas mais fáceis de comprar, Lightning McQueen, Minions, aqueles cachorrinhos bombeiros do paw patrol…mas Samuel queria mesmo a sua ‘festa de livros’.

A fizemos então. E depois de comer todos os brigadeiros que pude em busca de um sentido qualquer, e de pensar, como dei de fazer todas as noites, nas saudades, angústias e nas dúvidas que me acompanham, fui me lembrando daquele apartamento de Praga, e daquele escritor-jornalista que viveu ali. Lembrei-me do breve tempo que passei ali antes mesmo do Samuel existir.

Estranhamente algum sentido se fez nessa confusão toda da vida, tão rápida.

Um deles é que fazemos família por onde vamos, e que nessas andanças e desencontros, sempre haverá alguma família a se deixar. A saudade vai ser mesmo minha indesejada companheira de viagem. É o preço do mover-se, e do mover do tempo. O segundo é que sempre terei os livros e todas as mais maravilhosas questões humanas para me entreter. Tenho que parar de deixá-los por onde eu vou (os livros e os meus amigos). Já me doeram demais essas rupturas todas, já arrancaram pedaços demais. É hora de comprar aquela mesa antiga de madeira escura, é hora de fincar os braços nesse teclado por noites suficientes para furá-lá. É hora de ver árvores e crianças crescendo pela mesma janela, que dê pra um mesmo jardim.

E se eu souber me permitir essas noites de silêncio, aquilo que sou eu pode, quem sabe, continuar sendo, e ainda será possível me encontrar com a paz e a certeza daquele apartamento de Praga. Basta apenas uma mesa de madeira escura, uns momentos pra parar, um bocado de silêncio, e algumas letras pra juntar.

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